Olhe o que os outros fazem, não o que dizem

07/10/2022
Coluna de Milton Rego

 

Há poucos dias, me reuni com dirigentes de uma entidade do setor químico na Europa. É sempre produtivo observar como a indústria está se comportando lá fora. Historicamente, o Velho Continente antecipa as tendências ligadas à agenda ESG e à economia verde. Além disso, dona de uma sociedade civil extremamente bem articulada, a Europa aponta caminhos de relacionamento com stakeholders que servem de exemplo para o mundo. Tais movimentos significam custo e investimento, mas o bloco também sabe se proteger muito bem. A região estabelece, como nenhuma outra, barreiras não tarifárias para proteção da sua indústria. Um exemplo é a norma Reach para químicos, que acaba se refletindo nos demais segmentos da indústria.

Todas essas questões, porém, estão eclipsadas em razão do aumento vertiginoso do custo da energia. A Europa foi pega literalmente no contrapé. Nos últimos 20 anos, empenhou-se em mudar a sua matriz energética. Começou com o paulatino fechamento das centrais nucleares, na esteira do acidente de Fukushima, no Japão. Uma década depois, apresentou o Pacto Ecológico Europeu (batizado pela imprensa de Green Deal), cujo objetivo é tornar a Europa neutra em carbono até 2050. Esses acordos macronacionais foram desdobrados em metas setoriais para a indústria e são especialmente sensíveis para os setores energointensivos, como é o caso da indústria química.

Essa era a perspectiva quando irrompeu a guerra na Ucrânia. Com a invasão russa, vieram as diversas e duras sanções do Ocidente. E, agora, a Rússia retalia de forma a provocar o maior dano à Europa: diminuindo o fornecimento de gás ao bloco. 

Na hora em que a Europa começou a “desmontar” a infraestrutura de geração de energia nuclear e de carvão, e, no momento em que se defrontou com o maior aumento de temperatura dos últimos 30 anos que provocou seca histórica em seus rios e reservatórios, tem de conviver com uma súbita redução na disponibilidade de gás.

A possibilidade de racionamento e a dificuldade de obtenção de outras fontes de energia levaram os preços dos contratos de eletricidade na Alemanha ao recorde de € 750,00 por megawatt/hora, cerca de dez vezes o nível de um ano atrás. 

Para a indústria energointensiva europeia, isso equivale a uma nova pandemia. Planos precisaram ser refeitos, contemplando, inclusive, a possibilidade de interrupção de atividades. Vale lembrar que a Europa é a segunda maior produtora de insumos químicos do mundo, atrás apenas da China. Esse mercado movimentou € 500 bilhões em 2020 (ano marcado por uma retração mundial de 4,3% do setor).

Foi nesse clima que a minha reunião aconteceu. Como a indústria, especialmente o setor eletrointensivo, e os países da União Europeia estão resistindo a crise? A discussão ainda está no início, mas já podemos extrair dela várias lições.

 

Lição 1 – Como na pandemia, é importante manter a saúde financeira e a resiliência das empresas. E o governo tem um papel fundamental nesse jogo.

Os governos dos países europeus estão relativizando demandas e objetivos do Green Deal e adequando os cronogramas para reduzir o impacto do aumento da energia elétrica. Alguns criaram impostos extraordinários a fim de compor um fundo que subsidie os setores e os consumidores mais afetados.

Lição 2 – O livre mercado só funciona quando estamos ganhando. Caso contrário, vale mesmo é a proteção.

A União Europeia vai estreitar as barreiras não tarifárias para os produtos eletrointensivos. O bloco não ficará observando passivamente o aumento das importações. É possível que isso se reflita no mecanismo de ajuste de carbono na fronteira da União Europeia (CBAM, na sigla em inglês), com ampliação dos setores submetidos a esse regime, por exemplo. 

Lição 3 – O melhor de uma guerra é no quintal do vizinho, bem longe do meu.

Quem vem lucrando com guerra entre Ucrânia e Rússia são os produtores de gás. Nesse sentido, os Estados Unidos e a sua indústria estão na frente. Exportaram aproximadamente três quartos de sua produção de GNL para a Europa nos quatro primeiros meses de 2022. O Velho Continente representava um terço das exportações norte-americanas no mesmo período do ano passado. O governo norte-americano utiliza a sua poderosa capacidade de exercer sanções financeiras e tecnológicas contra a Rússia e obtém, em contrapartida, lucros maiores para a sua indústria. E manobra para que a Europa mantenha a pressão na sua fronteira oriental. Me lembra a máxima do príncipe de Shrek: “Irei lutar até a última gota do seu sangue...”

Lição 4 – Também como na pandemia, o mercado terá de se apoiar na capacidade dos governos para conduzir os atores econômicos na travessia da crise.

A dicotomia Estado versus mercado não tem sentido no momento. Para a Europa superar os tempos difíceis será necessário que os setores público e privado atuem complementarmente.

Direto da Fonte