A perda de vidas é o mais alto preço pago quando rejeitos de mineração não são gerenciados adequadamente. A tragédia-crime de Brumadinho (MG), ocorrida em 25 de janeiro de 2019, é consequência de uma mentalidade empresarial na qual o ganho econômico está acima da vida, impondo um alto custo social à sociedade. Não podemos mais permitir que isso continue acontecendo. Precisamos de mais humanidade no setor mineral.
O principal dever das empresas é garantir a segurança de suas operações para, depois, pensar em como elas podem ser lucrativas, e não o contrário. E precisamos de regras e sanções internacionais para empresas que violam os direitos humanos e causam poluição ambiental por não lidarem com seus rejeitos adequadamente.
É importante lembrar que há, no Brasil, 75 barragens em situação de alerta ou emergência declarada de um total de 458 barragens enquadradas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), segundo relatório de agosto da Agência Nacional de Mineração (ANM). Das 75 barragens, 4 estão em situação de emergência em nível de alerta 3, o que significa que estão sob risco de ruptura iminente ou com alta probabilidade de rompimento. Os 4 reservatórios de rejeitos de mineração estão localizados em Minas Gerais - 3 deles de propriedade da Vale e 1 da ArcelorMittal Brasil -, em cidades da região metropolitana de Belo Horizonte -- Nova Lima, Ouro Preto, Barão de Cocais e Itatiaiuçu.
Então, o que se pode concluir? A resposta é uma só: outras tragédias podem acontecer a qualquer momento. Na minha opinião, a ONU (Organização das Nações Unidas) não está fazendo o suficiente diante de uma questão tão séria, pois deu ao ICMM (Conselho Internacional de Mineração e Metais), que representa a indústria, mais poder do que deveria no processo de elaboração do novo padrão global para gerenciamento de rejeitos e temo que o mesmo aconteça no Instituto Global de Gerenciamento de Rejeitos da ONU. É um grande motivo de preocupação que o ICMM proteja os interesses das corporações acima de tudo.
Nasci e cresci em Brumadinho, em Minas Gerais (MG). O próprio nome do estado aponta qual é o nosso maior tesouro e maldição: as muitas montanhas que embelezam a paisagem são ricas em minerais e pedras preciosas, o que tem sido objeto de cobiça desde o século 17, quando o Brasil era colônia de Portugal. Em 2019, o povo de Brumadinho, inclusive minha família e eu, conhecemos as consequências de tal prática da maneira mais terrível. O rompimento da barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, ceifou 272 vidas e destruiu o meio ambiente.
Brumadinho é agora um lugar associado às piores falhas de barragens de rejeitos do mundo. O rompimento da barragem da Vale é a maior tragédia humanitária do Brasil e o segundo maior desastre industrial do século.
O modelo atual de negócio da indústria de mineração claramente não funciona. Não sou engenheira, mas, para mim, é bastante simples entender que, se você constrói uma barragem a montante para suportar uma certa quantidade de material em uma área que recebe muita chuva e não possui mecanismos adequados para drenar essa água, em algum momento ela se liquefaz. O fato de a Vale não ter feito nada em Brumadinho sabendo do perigo que sua barragem apresentava, e tendo todos os recursos para fazê-lo, diz o suficiente sobre sua ética, ou melhor, a falta dela.
Quando uma empresa conhece os riscos e não faz nada, está optando por matar e deve ser responsabilizada. E não apenas a empresa, mas os indivíduos que estiveram envolvidos no processo de tomada de decisão. Se a barragem não tivesse sido certificada como segura, é improvável que tantos trabalhadores estivessem ao seu redor. E ela só foi certificada como segura porque a empresa alemã Tüv Süd emitiu um laudo de estabilidade da barragem sob pressão da Vale, como as investigações oficiais mostraram.
Quatro meses após a emissão do certificado, a barragem que armazenava os rejeitos de minério colapsou. Na Alemanha, a Tüv Süd é alvo de duas ações judiciais na área cível com o objetivo de analisar acusações de que a empresa teria responsabilidade na tragédia pela emissão do laudo. Além de serem importantes diretamente para as famílias de vítimas e atingidos pelo rompimento, os processos podem contribuir para garantir que as empresas estrangeiras sigam padrões éticos e de segurança não apenas em seus países de origem, mas nas demais nações onde têm atuação.
Na Justiça brasileira, a Tüv Süd e a Vale também são rés em uma ação criminal por danos ao meio ambiente a partir de uma denúncia formalizada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG). Nesta ação, 16 pessoas, dentre elas o ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, são acusadas de homicídio qualificado.
Além da Polícia Federal, três comissões parlamentares de inquérito investigaram as causas do rompimento e cito a conclusão de uma delas: “Pela análise das provas colhidas por esta comissão, não há dúvida de que o crime de Brumadinho foi causado pela omissão daqueles que, no exercício de suas funções profissionais, tiveram conhecimento da condição instável da barragem B1 e, embora pudessem, não tomaram providências para tentar evitar a perda de vidas e danos ao meio ambiente [...]. Todos os envolvidos, de técnicos ao presidente da empresa, estavam cientes do risco de rompimento da B1 e nada fizeram para evitar o rompimento da barragem”.
Desde o primeiro dia, a Vale mostrou zero sensibilidade quanto aos danos psicológicos que causou e o tempo de duração dessas consequências à saúde emocional. Desde o início, a empresa não apoiou as vítimas e parentes, nossos pedidos, e nunca abordou as famílias. A maior prova de insensibilidade empresarial é que a corporação vem negando a familiares o recebimento de indenizações, impetrando recursos judiciais contra os pleitos legítimos de familiares de vítimas. É um direito que o governo negociou com a Vale em bilhões de dólares, uma questão denunciada há anos.
Obviamente, nenhum dinheiro jamais será capaz de reparar os danos ou trazer de volta aqueles que perdemos, mas permite que as pessoas recomecem e encontrem maneiras de se recuperar. Sobretudo é uma penalização que pretende ensinar, para as empresas, que a vida tem valor absoluto e deve ficar sempre em primeiro lugar. Antes que seja tarde.
A tragédia de Brumadinho é inadmissível, tendo ocorrido poucos anos depois do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG). Antes do tsunami de lama de rejeitos que invadiu Brumadinho, ativistas tentaram impedir a Vale de obter licença ambiental. Depois, mais grupos locais foram formados, como a AVABRUM (Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão), da qual faço parte e que idealizou o Projeto Legado de Brumadinho, lançado em 2022.
Todos nós precisamos continuar lutando e defendendo mais ações globais e localmente, tanto para reparar os danos que foram causados quanto para evitar mais destruição no futuro. Das empresas de mineração, o que espero ver hoje é um verdadeiro compromisso com a segurança em primeiro lugar. Até agora, elas saíram ilesas, enquanto suas vítimas foram deixadas em pedaços, e isso é inaceitável.
* Angélica Amanda Andrade é Integrante da AVABRUM e membro do Painel Consultivo do Instituto Global de Gerenciamento de Rejeitos da ONU.