O Nome da Rosa – Parte II

17/12/2021
Coluna de Milton Rego

 

Por Milton Rego 

Na primeira parte deste artigo fiz considerações a respeito da democracia e dos partidos políticos. Nesta segunda e última parte, chegamos à economia.

A Rosa – As Políticas Econômicas

Só acreditam que a história vai acabar quatro categorias de pessoas: os cristãos, os judeus, os marxistas e os neoliberais...

Chegamos à parte a que nos propomos inicialmente: o que deveríamos esperar de partidos/políticas neoliberais e socialdemocratas (quanto aos nacionalistas, vamos falar deles depois). E, nomeando os seus representantes, economistas liberais/neoliberais/ortodoxos e economistas heterodoxos/keynesianos ou neokeynesianos, respectivamente.

De um modo geral, a diferença entre os dois grupos é a respeito do papel do governo. Podemos colocá-los em um gráfico, que nos irá dizer a respeito dos seus instrumentos de política.

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Os ortodoxos ou liberais irão reduzir as intervenções nos mercados, partindo do pressuposto de que isso é suficiente para termos crescimento. A natureza privada, individual, é o motor do sucesso. Qualquer regulação piora o resultado final. Numa síntese marota, poderíamos dizer que no capitalismo o indivíduo é bom. O governo é que o corrompe.

Os heterodoxos entendem que o mercado por si só não é suficiente para dar conta da complexidade da economia e, então, é preciso atuar significativamente em algumas regulações para garantir as condições de crescimento e resolver desigualdades. Ou seja, o capitalismo regulado é mais eficiente do que o capitalismo “liberal”. Por isso, um heterodoxo está mais próximo da social-democracia.

É claro que existem nuances: você pode ser ortodoxo e propor algum tipo de investimento público. Temos o exemplo recente do governo Temer que, tendo liberais no Banco Central e na Fazenda, optou por dar vazão a vários projetos/emendas de parlamentares, sendo classificado até de “keynesianismo fisiológico”. 

Vamos examinar a seguir algumas questões importantes para o Brasil e ver quais as soluções que um e outro lado propõem. É importante frisar a despretensão acadêmica do texto. A intenção é simplesmente jogar alguma luz sobre a discussão. Ficará claro que apenas o caminho ortodoxo ou neoliberal é reconhecido pela mídia econômica, uma boa razão para conhecer alternativas.

Política fiscal e gastos públicos

Os liberais irão dizer que a dívida pública tem de ser honrada a qualquer custo, que as finanças do país são como as finanças domésticas (gastou tem que pagar) e que o superavit é fundamental para dar uma indicação forte ao mercado de que o país tem uma política fiscal austera. Do contrário, aumentam-se as expectativas inflacionárias, a fuga de capitais e o câmbio se depreciará. Segundo eles, o que acontece no Brasil hoje é a comprovação dessa tese. Se tem crise, foi o Estado que a criou. 

Naturalmente, dentro dessa perspectiva a “PEC dos Precatórios” é uma coisa que não deveria existir. Por outro lado, o Teto dos Gastos veio para ficar e é o que vai dar condições de garantir a confiança dos mercados. Equilíbrio de contas públicas vem do contingenciamento das despesas do governo. 

Para analisar essa dinâmica de um modo irônico, recorro ao economista e ganhador do Nobel, Paul Krugman, que caracterizou o discurso liberal sobre déficits orçamentários em termos de “vigilantes de títulos” e “fada da confiança”. A menos que os governos reduzam seus déficits, os vigilantes dos títulos os apertarão, forçando o aumento das taxas de juros. Mas, se eles cortarem, a fada da confiança os recompensará estimulando os gastos privados mais do que os cortes os deprimem.

Já os heterodoxos irão dizer que orçamento econômico não é orçamento familiar. O governo precisa, sim, ter controle da dívida pública, mas lembram que gastos do governo, desde que devidamente planejados, estão relacionados ao dinamismo e ao crescimento do sistema. 

Por outro lado, argumentam, se a dívida soberana é em moeda nacional (como é o caso do Brasil), o país não “quebra”. Um bom exemplo foi o que aconteceu em 2020. Nunca o governo gastou tanto, nunca o déficit público foi tão grande e nunca a Selic esteve tão baixa -- vale dizer, o “mercado” continuou apostando nos títulos públicos mesmo numa situação delicada. E isso também aconteceu com todos os governos das principais economias. Desde o crash de 2008, eles têm lançado mão de uma política fiscal expansionista (gastando muito) e as taxas de juros se encontram em patamares baixos já há mais de uma década. O que é necessário analisar é a tendência da dívida em relação ao PIB. Se o parâmetro estiver controlado, é melhor o governo gastar mais para dar condições da economia crescer e assim ter condições de arrecadar mais.

É importante lembrar que todos os candidatos irão defender que o governo “gaste bem”. A questão é que, depois do Teto dos Gastos (uma boa intenção pessimamente implementada), o governo perdeu completamente a capacidade de fazer políticas anticíclicas. Não apenas isso, mas também a qualidade do gasto público diminuiu. Basta lembrarmos das famigeradas “emendas do relator”. 

Os ortodoxos irão dizer que é fundamental a permanência do Teto de Gastos e que as políticas contracíclicas não são necessárias. Os heterodoxos irão propor a reformulação do Teto para dar ao governo o poder de realizar as tais medidas e sair da “armadilha” de baixo crescimento.

As reformas

Assim como a maioria dos economistas são favoráveis a controle dos gastos, a maioria defende as reformas que tornariam o Brasil um país mais moderno e alinhado à OCDE: a reforma administrativa, a reforma tributária, e por aí vai. 

Mas, para os neoliberais, as reformas do Estado são ainda mais importantes do que para os heterodoxos. Eventualmente, um neoliberal poderá propor algum programa de transferência de renda, mas fará isso a contragosto e para ganhar votos. O que ele quer mesmo é que o mercado ajuste os salários, porque isso é o que vai aumentar o número de postos de trabalho. Reformas e rigor fiscal são a chave para o aumento dos investimentos e a confiança do mercado, tornando a economia mais receptiva para que os investidores decidam o que fazer.

Os heterodoxos pretendem que, além das reformas, o Estado seja um fator condutor da recuperação. Eles são críticos à visão de que apenas as reformas serão suficientes para a economia voltar a crescer. Argumentam, por exemplo, que a reforma trabalhista e a da previdência não possibilitaram a recuperação da atividade econômica.

Crescimento da economia

Especialmente nos anos 1980, nos governos de Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos EUA, a ideologia neoliberal deu as cartas. Seus defensores diziam que era o remédio necessário para curar os “excessos” dos anos anteriores, que haviam elevado a inflação e diminuído o crescimento. Era necessário encolher o papel do Estado e deixar o mercado alocar os investimentos. 

A Escola de Chicago foi a principal produtora de economistas do mainstream na época. As outras escolas norte-americanas de economia (Harvard, MIT) tinham uma visão diferente. Aceitavam o mercado como regra, mas propunham que o Estado metesse a colher em determinadas circunstâncias – nas crises e para corrigir pesadas desigualdades, por exemplo. Chicago pregava uma visão extremada do liberalismo econômico, na qual não existe papel para o governo. Governo bom é governo mínimo. 

Passados 40 anos, essa é a cartilha do Planalto (ou, pelo menos, da equipe econômica). Mas não é mais a visão hegemônica do capitalismo fora do Brasil desde as últimas décadas. Há muitos anos, os ganhadores do Nobel de economia têm trabalhos com elementos keynesianos. O mundo se voltou ao pensamento econômico heterodoxo nos EUA, na Europa e no Japão. Em 2020, veio o choque da pandemia e a emergência cada vez maior das questões climáticas. Está claro que as economias não podem prescindir de um Estado forte, atuante, com instrumentos variados para lidar com desafios globais. Sendo assim, o que o pensamento heterodoxo propõe?

Keynes começou a desenvolver uma teoria (depois reformulada parcialmente) que pudesse ser aplicada para mitigar o que aconteceu na Grande Depressão, em 1929. O pensamento econômico ocidental, liberal, tinha ajudado a construir a grande crise, enquanto o bloco socialista resistiu incólume com um Estado regulador.

Britânico, Keynes foi funcionário público, financista e professor em Cambridge. Ele era um capitalista nato e por isso se preocupava em dotar o Estado de ferramentas contracíclicas. Dizia que o Estado deveria intervir na economia sempre que necessário em áreas nas quais as empresas não podem ou não desejam atuar. E que a demanda por produtos e serviços é influenciada tanto pelo “mercado” quanto pela ação do governo. Em relação à uma situação de recessão, por exemplo, o Estado deveria tomar a frente e se endividar para estancar uma espiral contracionista. Por outro lado, em momentos de excesso de demanda e inflação, uma possível medida keynesiana seria aumentar os impostos para desaquecer a economia. 

Stiglitz, Nobel de economia em 2001 e membro da escola heterodoxa, afirmou que “a escolha não deve ser se o Estado deve ou não estar envolvido (na economia), mas como ele se envolve. Assim, a questão central não deve ser o tamanho do Estado, mas as atividades e métodos do governo. Países com economias bem-sucedidas têm governos que estão envolvidos em um amplo espectro de atividades.”

As saídas para fazer para a economia do Brasil voltar a crescer não poderiam ser mais diferentes entre as duas correntes. Para um liberal, o mercado vai dar conta de tudo. Desemprego?  Basta os trabalhadores aceitarem a diminuição dos salários para que o mercado volte a crescer. O que o Brasil precisa, então, é diminuir o papel do Estado e diminuir os custos associados à burocracia, fazendo reformas: previdenciária, trabalhista, da administração pública e mais a venda de estatais. O movimento bastará para nos deixar competitivos. E, uma vez competitivos, podemos abrir a economia e expô-la ao mercado internacional, o que irá melhorar a nossa produtividade, já que empresas ineficientes irão falir... O que nos leva ao próximo tópico.

O papel da indústria

Para os liberais, a questão da indústria nem se coloca, uma vez que será o mercado, que é autorregulável, que irá resolver tudo por meio de vantagens comparativas. Depois de tirar as amarras do Estado e abrir o país ao mercado internacional, o Brasil deve se dedicar somente àquilo em que é competitivo e importar o resto. Essa é a fórmula para sermos ainda mais competitivos. Qualquer intervenção é contra a liberdade dos cidadãos. Se a indústria não tiver um bom desempenho, o Brasil se concentrará na agropecuária, na exploração mineral e nos serviços.

Ter Indústria que não é competitiva e, especialmente, eleger “campeões nacionais” é um desvio da política econômica, que não deve existir segundo a visão liberal. A ideia é associada a uma formulação atrasada, ao PT. O fato de a indústria presente no Brasil ser de capital nacional, não tem nenhuma relevância. Daí a venda da Embraer ou a privatização da Petrobrás, por exemplo, serem importantes para purgar a economia nacional de deficiências. Alíquotas de importação devem ficar em patamares baixos porque alíquotas maiores geram proteção, que por sua vez gera ineficiências. Reduzindo as tarifas, os países irão desenvolver suas competências. Bancos de fomento não são necessários porque, se a ideia for boa, o mercado se encarregará de investir.

Para um heterodoxo, a indústria tem um papel fundamental e o Estado tem que cuidar dela; o Estado tem que ser empreendedor. E por que a indústria tem um papel fundamental? Porque é o setor de maior complexidade, que gera o maior número de empregos de qualidade e de maior remuneração, propicia inovação e a difunde pelo restante do ecossistema econômico. E é também a indústria que compra serviços de qualidade e sofisticação. Mas o que significa “cuidar”? 

Significa protegê-la nos períodos iniciais, cobrar eficiência quando madura, e investir em infraestrutura e em pesquisa pura, aportes que somente o Estado faz. Exatamente o que está acontecendo agora nos Estados Unidos e na Europa. O empreendedor capitalista não atua em campos de pesquisa onde o retorno não é claro. Isso cabe ao Estado. Da mesma forma, o capitalista não faz investimentos mirando retorno a longo prazo e sem certeza de demanda segura. Também aí o Estado deve colocar o dedo.

Esse papel do Estado pode ser mais ou menos nacionalista, separando o capital nacional do externo. Entendem os nacional-desenvolvimentistas que só o capital nacional garantirá a sustentabilidade do crescimento.

E chegamos ao fim da reflexão. Acho importante compreender a visão e os projetos para a economia e para a indústria dos candidatos a presidente. As críticas são conhecidas. Os liberais dirão que a condução econômica dos governos do PT foi equivocada e regredimos; os heterodoxos dirão que a panaceia das reformas não irá tirar o Brasil do atoleiro.   

Qual, portanto, deve ser o nome da rosa?