Quatro casamentos e um funeral
Por Milton Rego
Estamos a um ano da eleição do novo presidente e as apostas começam a esquentar.
Nos últimos tempos — e isso aconteceu no mundo inteiro —, as disputas eleitorais migraram do campo do debate político tradicional para o modo power. Turbinada pelas mídias sociais, o que deveria ser uma discussão de ideias virou luta de MMA sem juiz, um vale-tudo em que o objetivo é aniquilar o oponente. Nesse octógono de insensatez, quanto menos racional e mais engajado, melhor.
Juízos definitivos prosperam, não há meio termo. Presidentes foram bons ou péssimos. E, naturalmente, a política econômica do presidente péssimo também é péssima. Simples assim.
Será mesmo?
Considero fundamental para decidir o voto presidencial a discussão sobre as propostas econômicas dos candidatos — em especial os planos para o setor industrial que, infelizmente, vêm sendo colocados em segundo plano. O ideal é olhar as propostas sem preconceitos, mais ou menos como acontece no Casamento às Cegas, da Netflix, em que os pares dizem sim sem se ver, apenas com base naquilo que conversaram.
A economia deveria ser o fator mais importante para a escolha do próximo candidato porque, desde 2014, estamos metidos numa depressão, algo forte e mais extenso do que uma simples recessão. O PIB ainda não retornou ao seu valor de sete anos atrás. Isso é muito grave. Nessa toada, o efeito será a ruína de uma geração.
Portanto, é preciso escutar cuidadosamente o que cada candidato tem a dizer sobre o tema, esquadrinhar suas intenções, e optar pelo escolhido, como num casamento.
Eis aqui um roteiro do que acho que deve estar em discussão antes do “sim”:
1) O papel da indústria
Existe uma tentação (especialmente de uma parte dos comentaristas econômicos) de considerar que tudo se resolve por vantagens comparativas. O Brasil deve se dedicar somente àquilo em que já é competitivo e importar o resto. Dessa forma, a produtividade geral da economia aumentará.
É o típico raciocínio reducionista. Tal qual um Chile, seremos grandes exportadores de commodities (minério de ferro, carnes e grãos) e importaremos todo o resto. A questão é que commodities, em geral, e a incensada agropecuária exportadora, em particular, são atividades de capital intensivo e que geram poucos empregos.
Se quiser ter futuro, dar trabalho para mais de 120 milhões de almas economicamente ativas –– a população total do Chile soma pouco mais de 10 milhões de pessoas —, o Brasil não pode prescindir de uma indústria forte. O setor gera empregos de qualidade e de maior remuneração, propicia a inovação e a difunde pelo restante do ecossistema econômico. É a indústria que compra serviços de qualidade e sofisticação. O livre-comércio simplesmente não vai nos dar futuro.
É preciso dinamizar os setores portadores de futuro e desproteger a ineficiência. Tenha no radar um candidato cujo pensamento seja orientado para a transformação da indústria.
2) Abertura comercial
É consenso que o país necessita, com urgência, aumentar o fluxo do seu comércio internacional e sua inserção nas cadeias produtivas globais. O que se discute, como sempre, é maneira de realizar essa operação.
Deveríamos voltar ao modelo do governo Collor, que foi o maior movimento de abertura que tivemos? O gráfico acima mostra o que aconteceu.
Na época, aumentou-se as importações de bens intermediários (exatamente o que a nossa indústria fazia), que acabaram substituindo os produtos locais. A importação não trouxe a esperada competitividade e piorou a relação de trocas.
Pode-se argumentar: “Mas foi o problema do câmbio supervalorizado.”. De fato, um real forte ajudou a piorar as coisas. Mas agora temos o oposto: um câmbio deveras depreciado, sem que as exportações de produtos industriais tenham decolado. Pelo contrário, a situação piorou. O volume de importações cresceu 33%, entre 2008 e 2021 (últimos 12 meses até agosto), e as exportações se mantiveram constantes no mesmo período: - 0,3%. Em outras palavras, vivemos um processo de desindustrialização. Os produtores nacionais estão substituindo produtos brasileiros por importados.
Tudo leva a crer que uma abertura pura e simples da economia não vai fazer os industriais “saírem da Netflix e irem à academia”, como disse o ministro Guedes. Competitividade industrial é um assunto complexo, que não se resolve com frases de efeito.
Candidatos ao Alvorada, portanto, precisam apresentar uma proposta concreta sobre o tema.
3) Austeridade e rigor fiscal
Não tem um assunto mais em voga desde a proposta de contabilidade criativa do governo Bolsonaro para o “aumento” do Teto dos Gastos. Aqui, de novo, dez entre nove comentaristas defendem a austeridade fiscal. Se não for assim, o dólar vai para o espaço e os capitais fogem.
Um contraponto pode ser o que aconteceu em 2020. Nunca o governo gastou tanto, nunca o déficit público foi tão grande e nunca a Selic esteve tão baixa —vale dizer, o “mercado” continuou apostando nos títulos públicos mesmo numa situação assim.
À direita e à esquerda todos defendem que o governo “gaste bem”. Só que, por causa do Teto dos Gastos (uma boa ideia pessimamente implementada) e por causa da relação do orçamento público com o Parlamento, o governo perdeu completamente a capacidade de fazer políticas anticíclicas. Não apenas isso, mas também a qualidade do gasto público diminuiu. Basta lembrar das famigeradas “emendas do relator”.
Duas questões fundamentais estarão no colo do próximo governo: o financiamento da saúde e a questão da transição para uma economia mais verde. Para ambos é necessário investimento público.
Fuja, portanto, de pretendentes que não apresentem uma proposta factível e de longo prazo para tais questões.
4) Tributação
Eis outro consenso. Todos acham o nosso arcabouço tributário ruim. Fala-se em reforma tributária há 20 anos. De fato, nossa tributação é bizantina, regressiva e atravanca a economia. A grande questão é: como colocar o guizo no gato.
Existem duas propostas: a PEC 110 e a PEC 45, ambas exaustivamente debatidas. O que o candidato irá fazer com elas? Vai aumentar a tributação? Por quê? O Brasil arrecada muito?
Não conheço setor que defenda aumento da tributação. Pelo contrário, todos pregam desoneração – para crescer, para exportar, para criar empregos. Mas, mesmo que uma reforma seja neutra, alíquotas serão modificadas. É disso que se trata.
Nesse caso, quem vai perder e quem vai ganhar? Como o candidato pretende reunir as forças pró-mudança e mitigar a oposição para avançar a sua proposta?
Cuidado com o que você pede...
Juro baixo, taxa de câmbio competitiva e uma consolidação fiscal "amigável ao investimento" é o objetivo defendido pelo setor industrial. Da mesma forma, a redução da relação dívida/PIB e o alongamento da dívida pública — para promover intensa desoneração dos investimentos e da produção — é a Canaã de todo sindicato patronal. Neoliberalismo puro.
Essa é, em resumo, a fala de Márcio Holland, secretário da Política Econômica de Dilma Rousseff, em dezembro de 2011 quando, pela primeira vez, se falou em “Nova Matriz Macroeconômica”.
Quero deixar claro que a gestão da política econômica é importante e nem todo posicionamento econômico é como pensamos. O governo Dilma foi o que mais promoveu desonerações em favor da indústria. O professor Denis Rosenfield escreveu que “A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os “liberais” atuais estão se mostrando discípulos dos petistas.”
Fico por aqui.
Acho que este teaser é suficiente para se concluir que o casamento é ainda nebuloso. É preciso ter em mente que nos encontramos congelados numa visão única da economia — uma visão neoliberal dos anos 1980, a preferida “da Faria Lima”.
Menos Brasília e mais Brasil não está (e nem vai) nos tirar da “armadilha da renda média” em que nos encontramos. Lembro, para os gostam de falar “façam-se as reformas e tudo vai se acertar”, que já passamos por duas delas, a da Previdência e a Trabalhista, além de algumas importantes concessões, como a do saneamento, e nada aconteceu. O Brasil permaneceu estagnado entre 2017 e 2019 e, depois do choque da Covid, voltará à estagnação em 2022.
Quando somente o mercado financeiro fala, não há debate econômico. Desregulamentação, abertura, flexibilização, diminuição do papel do Estado, são medidas insuficientes para o país enfrentar os novos tempos. Não nos enganemos: ao mercado financeiro importa uma coisa: que o governo pague (e bem) a remuneração pelos seus títulos de dívida. Quanto à indústria...ora a indústria...
Outro dia, recebi pelo Twitter: “Se você trocar Brasil por Suécia, tudo o que Paulo Guedes fala faz sentido.” Concordo.
A ausência da discussão econômica nos condena ao presente. O momento do debate é agora. Do contrário, o caminho do altar em janeiro de 2023 corre o risco de se transformar num frustrante funeral.